Num universo de batuques africanos, vozes abafadas e uma história de corte real surge um ritmo que, mesmo que você tente, não te deixa ficar parado.

Por Rogério de Lima – Fonte: www.ruadebaixo.com

O Brasil é formado por uma miscelânea incalculável de ritmos e expressões culturais. Musicalmente falando, o samba, que antes era chamado de rumba pelos norte-americanos, é um dos ritmos que mais se destacaram internacionalmente, principalmente na figura da portuguesinha super brasileira Carmen Miranda. Mas existem diversos outros ritmos, como abossa nova, o chorinho, o forró, o frevo, o côco, a tropicalha, a catira, o vanerão, a músicacaipira, enfim, uma infinidade de sons. Essa nossa forma de gestação fez crescer aqui uma barafunda étnica que nos diferencia justamente pelo jeito “miscigenado” de ser. E dentre tantas misturas, vou falar um pouco de um ritmo tipicamente brasileiro e, o que não posso deixar de dizer, tipicamente miscigenado: o Maracatu.

Mas pra falar do Maracatu é preciso antes explicar um pouco de como eram as festas celebradas no período colonial – 1500–1808. Naquela época, o Brasil era basicamente composto por índios, negros, jesuítas e portugueses. Para amenizar um pouco das tensões culturais e religiosas da época, adaptaram a história dos Reis Magos para representar cada um desses povos que aqui habitavam; O Rei Bronzeado representava os índios, o Rei Negro, os povos traficados da África, o Rei Branco, os portugueses e a história do nascimento de Jesus representando os Jesuítas, concepção que, se não for criativa, é, no mínimo, interessante. Dessa vertente, evoluíram outros movimentos que ainda estão vivos por aqui, como o bumba-meu-boi, cheganças e pastoris.

Entre as diversas manifestações negras que existiam no Brasil, o auto de Coroação do Rei do Congo, ou a Congada, fruto dessas primeiras cerimônias, era uma das poucas festas autorizadas pelos senhores coloniais portugueses do Estado do Pernambuco, em Recife (nordeste brasileiro). Ela reunia os valores tribais de Angola e do Congo às tradições Ibéricas. Tratava-se de uma procissão animada por danças, músicas e cantos que acabavam em frente à igreja do Rosário, santa adotada pelos povos africanos. Neste ponto, toda a corte e seus vassalos assistiam à coroação do Rei do Congo e da Rainha Ginga de Angola. Esta corte era representada por todos os estratos sociais existentes num castelo, tais como: o rei, a rainha, a dama de honra do rei e da rainha, o duque, a duquesa, o conde, a condessa, os vassalos, o porta-estandarte, o guarda coroa, o corneteiro, os batuqueiros, etc… Tudo isso, claro, encenado por negros. É desta manifestação que nasceram os primeiros vestígios do Maracatu que conhecemos.

Quando em 1888 foi assinada a Lei Áurea, instrumento político que libertou os negros da escravidão, o Maracatu perdeu gradualmente o caráter de cortejo e passou a fazer parte das festividades do carnaval, sem perder, é claro, o cunho religioso que, com a prerrogativa da abolição, passava a fazer livre menção aos deuses do panteão africano.

Essa manifestação se tornou tão importante para esses povos que, no entorno do Maracatu, os grupos passaram a se reunir para tratar de outros assuntos que não tinham a ver exclusivamente com a festa, e sim com os problemas sociais e cotidianos. Geralmente, a rainha que era coroada no cortejo também era a mãe de santo das vilas e sua autoridade – social e religiosa –  era respeitada não somente nas festas, mas durante todo o ano.  A esses grupos foi dado o nome de Nações ou Maracatu de Baque Virado. Existiram diversas nações em Recife como, por exemplo: Nação Elefante – fundada em 1800, Nação Leão Coroado de 1863, Nação Estrela Brilhante de 1910, Nação Indiano de 1949 e Nação Porto Rico do Oriente – fundada em 1967. Cada qual com sua filosofia, as nações desfilavam nos carnavais e disputavam para saber quem seria a melhor daquele ano.

As características sonoras do Maracatu

Alguns pesquisadores afirmam que o nome Maracatu era utilizado como senha para informar que policiais do reino estavam à espreita. A fonética da palavra “ma-ra-ca-tu” tem o mesmo ritmo dos baques do tambor “tá-tá-tá-tum”.

O batuque é formado pelos seguintes instrumentos percussivos:

A alfaia: Tambores feitos em madeira e com couro animal, responsável pelo som grave e pela marcação do ritmo;

Caixa: Tambores agudos, alguns feitos de madeira outros de metal. Geram o som de rufos e preenchem o espaço sonoro das alfaias;

Gonguê: Instrumento de metal em formato de sino;

Ganzá: Instrumento cilíndrico e oco com pedrinhas em seu interior;

Agbê: Uma cabaça envolvida por miçangas trançadas.

Outros objetos fazem parte da festa, tais como: o porta-estandarte, que carrega o emblema da nação, e a Calunga, uma grande boneca de cera que, de acordo com as tradições, carrega os poderes daquele grupo.

As toadas são os cantos. Ela sempre é invocada pelo Tirador de Loas – aquele que puxa o canto – e os demais integrantes respondem ao chamado.  Os cantos referenciam a corte, a religiosidade, as tradições da nação e os valores africanos.

Esse é um canto da Nação Estrela Brilhante onde os integrantes apenas repetem o canto do Tirador:

Olha a costa velha é nagô afã

Estrela Brilhante é nação germana

vejo que na Estrela tem um brilho sem igual

uma luz tão fagueira ilumina a corte real

Nesse outro canto, também da Estrela Brilhante, fica visível a influência da corte portuguesa na composição das toadas. Neste caso, os integrantes respondem aos chamados do Tirador:

[ T ] Dança rainha, vassalo e escravo / [ I ] todos lanceiros e a corte real

[ T ] toque o batuque no baque virado / [ I ] dama de passo escute o compasso

[ T ] vem meu rei, embaixador e princesa também catirina olhe o baque

[ I ] zuando é o Estrela que já vem chegando

* [ T ] – Tirador perguntando

[ I ] – Integrantes respondendo

Maracatu de Baque Solto ou Maracatu Rural

Maracatu de Baque Solto ou Maracatu Rural foi uma linha que nasceu na segunda metade do século XX, no interior do estado de Pernambuco, na região dos grandes canaviais.

Inicialmente, a festa era formada apenas por homens e não fazia referência à corte. Mais tarde, sob influência do Maracatu de Baque Virado, passou a aceitar as mulheres e até coroar reis e rainhas. A Valéria Alves, 24 anos, estudante de Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, a PUC, explica que “em alguns grupos, a mulher não pode fazer, em hipótese alguma, parte da percussão, restando para elas os cantos”.

Na formação, utilizam-se também muitos instrumentos de sopro, como clarinete, saxofone, trombone, corneta e pistão. Já na percussão ficam a zabumba e a cuíca. A marcação é muito mais rápida e constante que o Maracatu de Baque Virado. Os foliões, com uma indumentária que chega a pesar 30 kilos, dançam de maneira mais curvada, o que referencia a cultura do corte de cana, no momento em que as pessoas precisam se abaixar para cortá-la na raiz.

O maior representante do Maracatu Rural foi o Mestre Salustiano, falecido em 2008, que, em entrevista dada no I Encontro Sul-Americano de Culturas Populares, afirma que, “a (disseminação) da cultura sempre viveu na mão de gente sofrida e agora é que está sendo reconhecida”. Isso demonstra um pouco de como sobrevive essa modalidade de Maracatu. Apesar de recente, ela foi importantíssima na concepção de novas linguagens musicais. Com um baque mais acelerado, a inserção de outros elementos mais agressivos, como o Rock, fica mais orgânica. Hoje já são 12 mil integrantes, formando 108 grupos de Maracatu Rural, espalhados em Pernambuco.

As manifestações atuais

Atualmente existem diversas vertentes para o Maracatu. Há os que defendem que ele deve ser mantido inalterado, sem modificação de sua matriz histórica, e os que adaptam às diversas linguagens contemporâneas.

Um exemplo de adaptação foi o Mangue Beat, movimento nascido em Recife na década de 90. Liderado pelos artistas Chico Science, do Nação Zumbi, e Fred 04, do Mundo livre S/A, a música brasileira presenciou uma revolução que não via desde a tropicália. Existiam outros movimentos na cena, mas todos com os pés fincados na cultura norte-americana. O Mangue Beat quebrou os padrões ao se apropriar dos 4 por 4 gringos, inserindo neles elementos do Maracatu Rural que fora inspirado nos arranjos de Mestre Salustiano, e na cultura local de Recife, principalmente fazendo referência ao mangue, o ecossistema mais rico do planeta.

Vítima em 1997, aos 33 anos, de um acidente automobilístico, Chico Science deixou um legado cultural inestimável. Foi a partir do lançamento do seu primeiro álbum, “Da Lama ao Caos”, em 1993, que nada mais foi como antes na música. Ele viajou em turnê pela Europa e Estados Unidos e abriu o show do Gilberto Gil no central park.

O movimento esquentou tanto os ouvidos de quem há muito tempo procurava algo inovador que, daí por diante, Recife se abriu novamente para a cena musical. Ao lado de Chico Science, outros músicos como Oto, Mestre Ambrózio e Cordel do Fogo Encantado ainda movimentam públicos pelo mundo inteiro seguindo a mesma linha de misturar as sonoridades atuais com elementos da cultura raiz de Pernambuco, como o Maracatu, o côco e o frevo.

A figura de Chico foi tão importante para a música que, de 4 de fevereiro a 4 de abril de 2010, o Itaú Cultural – braço cultural de um banco brasileiro – promoveu em São Paulo uma mostra sobre a vida e obra do Idealizador do Mangue Beat. Entre vídeos, fotos e salas decoradas com temas relacionados à cultura pernambucana, foram realizados diversos debates. Em um deles esteve presente Beco Dranoff – produtor musical brasileiro que vive em Nova Iorque, Borkowski Akbar – produtor do festival alemão Heimatklange, que significa “sons da terra”, Fred 04 – já mencionado, Bill Bragin – diretor de programação do Lincoln Center, em Nova York, Carlos Eduardo Miranda – entusiasta da cena mangue e produtor musical em Porto Alegre, e Paulo André Pires – Parceiro, amigo e produtor musical de Chico Science. “A coisa foi tão boa que, 13 anos depois, estão fazendo debate sobre o que Chico e Fred 04 criaram”, explica Beco Dranoff, e finaliza: “o movimento contribuiu para que o mundo e o Brasil voltassem os olhos para a cultura popular de Recife”.

Seguindo uma linha tradicional, inclinados, direta ou indiretamente, pelo boom do Mangue Beat, nasceram outros grupos mais tradicionais a fim de resgatarem as linhas raiz do Maracatu de Baque Virado. Um destes grupos é o grupo Bloco de Pedra que, desde 2001, abre a escola pública Alves Cruz, no bairro do Sumaré, em São Paulo, para oficinas de construção de instrumentos e estudo de ritmos do Maracatu. Vanessa Cristina, 22 anos e Patrícia Ferreira, 23 anos, ex-integrantes do grupo, contam que no início eram poucas pessoas e que hoje são mais de 600 por ensaio. Elas alertam que os grupos em São Paulo não podem ser caracterizados como Nação, pois nesses trabalhos são explorados apenas os cantos e os ritmos.

Nessa busca pelos grupos em São Paulo, eu visitei o grupo Caracaxá, que faz suas oficinas abertas ao público, às quintas feiras, dentro da Universidade de São Paulo – USP. No dia da visita aconteceu algo bem interessante e que mostra como é o envolvimento das pessoas com oMaracatu, mesmo que fora de Recife.  Uma das integrantes, a Cybelle, veio a falecer, vítima de um câncer. Em função deste fatídico acontecimento, deixei a entrevista de lado e pedi autorização para apenas estar com eles neste ensaio, que seria feito em homenagem à Cybelle. Quebrando os padrões dos ensaios foi hasteado o estandarte e, apesar da dor, todos tocaram e cantaram as toadas com muito mais força, numa cerimônia quase ritualística. Isso mostra como o Maracatu, ainda que não seja vivenciado com todos os preceitos da Nação, cria um relacionamento muito forte entre os integrantes.

É comum que esses movimentos façam os arrastões (desfile) pelas avenidas paulistanas. No dia 29 de novembro do ano passado (2009), diversos grupos do estado de São Paulo tomaram as ruas do centro da cidade com seus tambores e mostraram o que é a cultura do Maracatu. As pessoas que passavam se encantavam com o cortejo das alfaias e das mulheres com suas saias rodadas e coloridas.  De mansinho, o arrastão levou o público em seu trajeto que começou e terminou no Largo do Paissandu, centro velho de São Paulo.

A repercussão desta cultura tipicamente brasileira é tão representativa que já existem grupos espalhados pelo mundo inteiro: o Baque Forte, em Berlin, o Brighton Maracatu, na Escócia, o Maracatu Estrela do Norte, em Londres, o Maracatu Nunca Antes, em Toronto,  Maracatu NY, em Nova Iorque, Nation Stern der Elbe,  em Hamburgo, Alemanha, e Maracatu Macaíba, em Nantes, na França.

De 2 a 4 de julho de 2010 ocorrerá o 4º Encontro Europeu de Maracatu. O evento de três dias ocorrerá em Paris e contará com a presença de mestres de Maracatu de todo o mundo.  Para participar do encontro organizado pelo grupo Maracatu Nação Oju Obu é preciso pagar uma taxa de 50 euros. As vagas são limitadas em 350 pessoas e em janeiro deste ano já contavam com 205 confirmados.

Maracatu é uma expressão tipicamente brasileira e a cada dia ganha mais adeptos no mundo. Nascida do sincretismo religioso, agrega em sua essência traços da cultura ibérica e dos afro-descendentes brasileiros. Fruto de nossa concepção miscigenada, ela se relaciona com todos os nossos arquétipos sociais e psicológicos. Talvez por isso ganhou tanta força e tanta expressão de brasilidade afro.

Meu nome é Rogério Lima, sou brasileiro, paulistano da gema, amo esse pedaço de fim de mundo cosmopolitano e passarei a corresponder sobre cultura brasileira para o site Ruadebaixo. Como bom canarinho, minha casa estará aberta para quem quiser saber um pouco mais sobre nós. De cá, chamo todos pra conhecer os daí. E assim está feita a troca! Até a próxima matéria.